top of page

Que corpo é este (...) | J.J. Marques | 2020

As imagens do corpo, os seus significados e sentidos, nas representações artísticas do corpo, foram ao longo do século XX, e tem sido até aos dias de hoje, o sintoma mais evidente que o corpo da humanidade mudou. Neste exercício de visão retrospectiva, percebem-se momentos ou condições, algumas delas dramáticas, como as guerras, que transformaram o corpo, as suas representações e actuações não só no plano físico e ideológico, mas também no plano social, moral ou ético. Reconhecem-se também, no plano das representações artísticas do corpo, que o estatuto e os domínios das disciplinas artísticas tradicionais, mudaram. Mudaram também os meios e modos de produção e expressão.  Mudaram os contextos de apresentação, exposição e validação. E tudo isto contribuiu, para que o século XX fizesse de si e deixasse de si ao futuro uma imagem fragmentada, angustiada e trágica (...) aqui resumido, do texto ­— Trajectos da escultura – e depois — de João Pinharanda, do livro, ‘Alguns corpos — Imagens da arte Portuguesa entre 1950-1990’, editado em 1998. Esse futuro é uma espécie de reprodução caleidoscópica das imagens possíveis — no tempo e no espaço — do corpo e dos seus modelos. São imagens que nos ajudam a pensar, não apenas, a condição do corpo nas representações da arte mas também do corpo real, numa relação que não é apenas visual, é também física.             A imagem de um self narciso, na linguagem de Isabel Dores, convoca para esse corpo, na peça ­ — diálogo falocentrista | 2020, gesso — as expectativas de perfeição, de beleza e de poder. Mas também, do medo e da incapacidade de aceitar a dependência e fragilidade humana. Mostra quanto o corpo pode ser egoísta em relação ás suas necessidades. Mostra como esse corpo preenche um vazio libidinal redireccionando-o para as coisas. Mostra ainda uma possível relação entre as pulsões sexuais, a sociedades de consumo e o sistema capitalista de produção.             Esse corpo individualista e egocêntrico, que volta sempre a si mesmo, já não se vê mais reflectido na água nem morrerá afogado na profundidade do seu olhar como na discrição poética do mito de Narciso. Esse corpo expõe-se literalmente. É uma imagem. É um objecto. É um perfil. É uma página do Instagram ou do Facebook. É um canal no YouTube. É um produto de uma acção globalizante de interacção e partilha.             Acto 1 — Entre o Corpo e o Objecto, actualiza ainda, em modo exposição, um outro corpo, dotado de uma certa forma de ambivalência. Está, é presente, mas a um instante de ser outra coisa. Esta condição do corpo é evidente na instalação — por dentro por fora | 2020, composta por 67 corações de parafina reciclada, gesso, lâmpadas incandescentes, latão e fio de algodão — onde a fonte de calor acelera o processo de transposição da matéria e da forma. Os corações de parafina expõem a vulnerabilidade do corpo. O calor produzido pelas lâmpadas incandescentes, faz com que derretam, percam a forma e o sentido original para dar corpo a outra forma. Uma pele espessa e gorda moldada numa cuidadosa montagem de túmulos de gesso, caixas vazias, que encerram o ciclo, ou não, na peça — sem título [4 vazios] | 2020, ­ — em quatro blocos de parafina reutilizada.  Acto 1 — Entre o Corpo e o Objecto não apenas uma exposição que reflecte sobre a condição do corpo humano, da sua humanidade. Mas também é.             O resto aparece, como corpo fragmentado, uma espécie de escrita que combina corpo e memória, nos dois desenhos a giz sobre fundo negro e numa pequena ruína de gesso — sem título | 2020, gesso — como um resto deixado para trás. Out.2020 J.J.Marques

O espaço entre | Carlos Marques | 2017

Para a Isabel Dores Segundo afirmas, a tua exposição foca-se em questões de individualismo e falta de comunicação e na tentativa de materializar o espaço que medeia entre as pessoas. Neste sentido eleges um ser dual e invisível explorando, para o exprimires, o jogo entre o positivo e o negativo. Na minha linguagem, a tangência; esse espaço película que une os corpos, apenas nulo, mas podendo conter uma imensidão de significantes, assume aqui uma presença decisiva e uma condição definitiva. Mas a sua expressão precisa, em assumir formalmente essa invisibilidade, convoca em absoluto a ausência e ela é o vetor primordial na definição de um percurso conceptual que evidencia vivências mais ou menos magoadas. Por muito que a obra de um artista persiga determinados conceitos, aborde temas diversificados, ou se exprima através de formas aparentemente não familiares, uma leitura atenta e profunda à forma como interpreta as ideias que sistematicamente patenteia, identifica sempre um carácter e uma linha de sentido autobiográfico. A expressão plástica que o artista imprime ao seu trabalho, a forma como conjuga ou manipula os elementos materiais que elege para construir o seu discurso, pode parecer atraiçoar essa condição mas, os vectores presentes e repetidos no conjunto da obra, vêm afirmar essa qualidade individual e, no teu caso, ela afirma-se de uma maneira explícita, permanente e bastante eloquente. A eleição da escala real para os elementos que moldas no próprio e em outros corpos, assume um caráter íntimo e reforça a verdade com que exploras e compões plasticamente essa temática. A memória que tinha de um trabalho com uma sensibilidade e expressão muito própria não foi atraiçoada, passados estes anos, apesar de se mostrar agora aos meus olhos, com uma capa mais serena e uma afirmação mais consistente na exaltação da tangência, presentemente, com a representação do sujeito ausência mas com a mesma sensualidade latente. A repetição dos elementos orgânicos, negativo/positivo ou representativo do corpo, que tratas através da frieza sistemática do módulo, revelam uma obsessiva atitude perante prováveis gestos ou memórias, afirmam uma ausência persistente e conferem a sistematização precisa à afirmação da permanência. A linguagem plástica revela-se como um paradoxo já que parece mostrar, para além de uma íntima e dolorosa sensualidade, um grande carácter impessoal na evocação de uma realidade maquinal do mundo atual que é dado pela sugestiva imagem da fabricação em série e do seu contentor. Mesmo os materiais escolhidos, parecem por vezes querer acentuar uma tentativa de distância, mas a referência evidente ao ex-voto faz regressar a questão a um determinado culto e à evocação da prece. As tuas frases procuram, num fugaz olhar de uma relação gráfica, a capacidade de descobrir uma leitura descomprometida, mas a poesia e força dos significados e a forma como se assumem, comprometem-nas novamente na relação aos afectos. Esta dualidade de conceitos, permanente em todo o trabalho, revela afinal uma atitude coerente na assunção de uma intimidade desencontrada e na sua catarse. A forma de manipular os elementos que utilizas para dar corpo ao teu imaginário e a constância com que o assumes, é feito através da criação de uma linguagem plástica atual e autêntica, em que a presença dos sentidos são constantemente depurados numa perene e significante dialética. Carlos Marques Julho, 2017

bottom of page